Aula de português

A linguagem na ponta língua,
tão fácil de falar e de entender.

A linguagem
na superfície estrelada de letras,
sabe lá o que ela quer dizer?
(...)
O português são dois; o outro, mistério.

Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 5 de maio de 2010

ANÁLISE DA MÚSICA CÁLICE

ANALISE DAS METAFORAS DA MUSICA CALICE 


“Cálice” uma das músicas mais panfletárias do Chico Buarque, somando-se o fato dele ter como parceiro a genialidade do Gil, fizeram uma grande obra. A análise é extensa por conta de que todos os versos vêm imbuídos de metáforas usadas para contar o drama da tortura no Brasil no período da ditadura militar.

(Pai, afasta de mim esse cálice)
Sintetiza uma súplica por algo que se deseja ver à distância. Boa parte da música faz uma analogia entre a Paixão de Cristo e o sofrimento vivido pela população aterrorizada com o regime autoritário. O refrão faz uma alusão à agonia de Jesus no calvário, mas a ambigüidade da palavra “cálice” em relação ao imperativo “cale-se”, remete à atuação da censura.

(De vinho tinto de sangue)
O “cálice” é um objeto que contém algo em seu interior. Na Bíblia esse conteúdo é o sangue de Cristo, na música é o sangue derramado pelas vítimas da repressão e torturas.

(Como beber dessa bebida amarga)
A metáfora do verso remete à dificuldade de aceitar um quadro social em que as pessoas eram subjugadas de forma desumana.

(Tragar a dor, engolir a labuta)
Significa a imposição de ter que agüentar a dor e aceitá-la como algo banal e corriqueiro. “Engolir a labuta” significa ter que aceitar uma condição de trabalho subumana de forma natural e passiva.

(Mesmo calada a boca, resta o peito)
Os poetas afirmam que mesmo a pessoa tendo a sua liberdade de pronunciar-se cerceada, ainda lhe resta o seu desejo, escondido e inviolável dentro do seu peito.

(Silêncio na cidade não se escuta)
O silêncio está metaforicamente relacionado à censura, que, desta forma, é entendida como uma quimera, um absurdo inexistente, porque, na medida em que o silêncio não se escuta, o silêncio não existe.

(De que me vale ser filho da santa / Melhor seria ser filho da outra)
Não fugindo à temática da religião, Chico e Gil usam de metáforas para mostrar suas descrenças naquele regime político e rebaixam a figura da “pátria mãe” à condição inferior a de uma “prostituta”, termo que fica subentendido na palavra “outra”.

(Outra realidade menos morta)
Seria uma outra realidade, na qual os homens não tivessem sua individualidade e seus direitos anulados.

(Tanta mentira, tanta força bruta)
O regime militar propagandeava que o país vivia um “milagre econômico” e todos eram obrigados a aceitar essa realidade como uma verdade absoluta.

(Como é difícil acordar calado / se na calada da noite eu me dano)
O eu-lírico admite a dificuldade de aceitar passivamente as imposições do regime, principalmente diante das torturas e pressões que eram realizadas à noite. Tudo era tão reprimido que necessitava ser feito às escondidas, de forma clandestina.

(Quero lançar um grito desumano / que é uma maneira de ser escutado)
Talvez porque ninguém escutasse as mensagens lançadas por vias pacíficas e ordeiras, uma das possibilidades, por conta de tanto desespero, seria partir para o confronto.

(Esse silêncio todo me atordoa)
Esse verso denuncia os métodos de torturas e repressão, utilizados para conseguir o silêncio das vítimas, fazendo-as perderem os sentidos.

(Atordoado, eu permaneço atento)
Mesmo atordoado o eu-lírico permanece atento, em estado de alerta para o fim dessa conjuntura, como se estivesse esperando um espetáculo que estaria por vir.

(Na arquibancada, pra a qualquer momento ver emergir o monstro da lagoa)
Entretanto, o espetáculo pode ser, ironicamente, somente o surgimento de mais um mecanismo de imposição de poder do regime, representado pelo monstro da lagoa.

(De muito gorda a porca já não anda)
Essa “porca” refere-se ao sistema ditatorial, que, de tão corrupto e ineficiente, já não funcionava. O porco também é um símbolo da gula, que está entre os sete pecados capitais, retomando a temática de religiosidade e elementos católicos.

(De muito usada a faca já não corta)
Demonstra inoperância, ou seja, mostra o desgaste de uma ferramenta política utilizada à exaustão.

(Como é difícil, pai, abrir a porta)
É expresso o apelo para que sejam diminuídas as dificuldades, mas ao mesmo tempo apresenta a tarefa como sendo muito difícil. A porta representa a saída de um contexto violento. Biblicamente, sinaliza um novo tempo.

(Essa palavra presa na garganta)
É a dificuldade para encontrar a liberdade, a livre expressão. É o desejo de falar, contar e descrever a todos a repressão que está sendo imposta.

(Esse pileque homérico no mundo)
Refere-se ao desejo de liberdade contido no peito de cada cidadão dos países vivendo sob os vários regimes autoritários existentes no mundo.

(De que adianta ter boa vontade)
É um autoquestionamento sobre a ânsia de lutar pela liberdade, uma vez que o mundo estava ao avesso. Refere-se a uma frase bíblica: “paz na terra aos homens de boa vontade”.

(Mesmo calado o peito resta a cuca dos bêbados do centro da cidade)
Mesmo sem liberdade o homem não perde a mente e pode continuar pensando.

(Talvez o mundo não seja pequeno nem seja a vida um fato consumado)
A partir deste verso o eu-lírico sugere a possibilidade de a realidade vir a ser diferente, renovando suas esperanças.

(Quero inventar o meu próprio pecado)
Expressa a vontade de libertar-se da imposição do erro por outros para recriar suas próprias regras e definir por si só, quais são seus erros, sem que outros o apontem. Tem o significado de estar fora da lei. O verbo aproxima-se do desejo urgente e real de liberdade.

(Quero morrer do meu próprio veneno)
Neste verso está implícito que ele deseja ser punido pelos erros que ele vier a praticar seguindo o seu livre-arbítrio, e não, tendo seu desejo cerceado, punido por erros que o sistema acha que ele poderá vir a cometer.

(Quero perder de vez tua cabeça / minha cabeça perder teu juízo)
Traz a idéia de que o eu-lírico deseja ter seu próprio juízo e não o do poder repressor. Quer decapitar a cabeça da ditadura e libertar-se do juízo imposto por ela, para ser dono de suas próprias idéias.

(Quero cheirar fumaça de óleo diesel / me embriagar até que alguém me esqueça)
Para encerrar, Chico e Gil usaram uma imagem forte das táticas de tortura. Para fazer com que os subjugados perdessem a noção da realidade, dentro da sala os repressores queimavam óleo diesel, cuja fumaça deixava-os embriagados. Entretanto, os subjugados também possuíam táticas antitortura, e uma das artimanhas era justamente fingir-se desmaiado, pois, enquanto nesta condição, não eram molestados pelos torturadores.

AUTOR = Sérgio Soeiro 

27 comentários:

  1. na parte ''quero cheirar fumaça de óleo diesel'' eu
    pensei que fosse das fabricas...foi o que minha professora estava falando.

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    1. Boa tarde, Elisson. Lembre-se que os textos são subjetivos e cada um interpreta à sua maneira. Abraço!

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    2. Exato Mayra Lima,apesar de mais de um viés de interpretação a análise não pode fugir ao contexto da realidade em que o texto foi escrito. Se há acordos entre fatos históricos diferentes na narração é necessário sermos fiel à trama atual sem perder claro,aos vários sentido que uma interpretação de cunho subjetivo possa nos trazer, mas nunca à nossa maneira; porque não somos o processo histórico mas elementos dele. Um abraço.

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    3. Exato Mayra Lima,apesar de mais de um viés de interpretação a análise não pode fugir ao contexto da realidade em que o texto foi escrito. Se há acordos entre fatos históricos diferentes na narração é necessário sermos fiel à trama atual sem perder claro,aos vários sentido que uma interpretação de cunho subjetivo possa nos trazer, mas nunca à nossa maneira; porque não somos o processo histórico mas elementos dele. Um abraço.

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  2. que texto incrivel ! me ajudou demais na prova de portugues ! muito obrigada !

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  3. A melhor análise que já encontrei mediante uma infinidade de textos lidos. Parabéns Sérgio Soeiro pela sua visão aguçada e crítica.

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  4. Por que a expressão "monstro da lagoa" representa o poder do regime??

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    1. relembra o corpo de sturt angel que foi atirado no mar!

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    2. Gil, explicando a letra, diz que Chico Buarque morava na cobertura de um edifício de frente à lagoa, daí o trecho "Na arquibancada, pra a qualquer momento / Ver emergir o monstro da lagoa".
      Essa explicação pode ser encontrada neste link: https://www.youtube.com/watch?v=8CnSiaP-jL4

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  5. Pesquisei aqui no google, refere-se a o personagem do filme americano Creature from the Black Lagoon. Podemos chamar, de acordo com a figuras de estilo, de uma PERIFRASE.

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  6. Chico Buarque foi o artista brasileiro que mais lutou contra a #DitaduraMilitar, suas canções ajudaram muito o Brasil naqueles recuados tempos.

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  7. "Na arquibancada, pra a qualquer momento ver emergir o monstro da lagoa"
    Já ouví dizer que esta frase se refere a um militante estudantil do Rio de Janeiro, cujo apelido era MONSTRO, foi jogado vivo na Lagoa Rodrigo de Freitas, com uma sapata de cimento.

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  8. "Na arquibancada, pra a qualquer momento ver emergir o monstro da lagoa" Acredito que esta parte da musica seja referente a um livro chamado "O leviatã" de Thomas hobbes (Teoria contratualista) do qual relata uma sociedade em constante desequilíbrio e guerra, mas abre mão de sua liberdade para eleger um monarca (Poder Estatal) que irá reger as relações e trará a paz social.

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  9. Chico Buarque nos impressionando com suas belas canções
    Um cara q lutou muito pela ditadura militar

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  10. Se o vento que traz os pensamentos.....
    Afasta de mim todos os tormentos.....
    Se entre as anandas traslado.........
    Para que o meu Ser, nao fique calado......
    Que todo esse dioxido de carbono
    a deixar o pensar intoxicado...........
    Sublimi se no suor.......
    A dar espaco para o viver libertado.......
    Nao vodcaminhao nem tequilatemente
    envenanei me na cicuta...............
    do cacetete que nao escuta...................
    A profundeza dessa inorexavel labuta..........

    Nem copo de colera
    Nem calice de sangue .
    Mas sim o grito do Mangue,
    O chao de estrelas subversivas
    A evanescer a dor langue ....
    Escrito pelo filho gipsita .....
    da elite destroi se o brinco
    De macacita.
    Explode o canto nu a nudez
    Libertadora de toda insensatez
    que es falsa moralidez.
    Uma politica
    A alimentar o sistema tao tanatico.,
    Que nao enquadra se nem na idade paleolitica...
    No o orgulho da esfinge.
    desvelada por edipo,
    E os que edipoe em derrocada....
    as egides desse sistema que so finge.

    Calice, calice, calice sistema e bebas o liquido tanatico da propria origem em um Grande Calice...

    Anarquia Vive. E nao ha Calice de vinho tinto de sangue e copo de colera a ser cicuta, index, rosa atomica, paixao platonica.

    Somos livres. Para Amar e sermos como somos e estamos a Ser.

    Mais ser filho da Puta,
    Autentica ,fiel a idelogia ....
    Do que da Patria......
    Uma farca, auto traidora.......
    Mais beber do extase
    Libertador cosmico.....
    Do que do vinho tinto de sangue ,do suor amargo, do copo de colera, a embriagar alienadamente os veneradores do Sistema.

    Minha Homenagem a musica Calice de Chico buarque.

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  11. Parabéns pelo excelente trabalho de interpretação!

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  12. E há ainda a música "Angélica" do Chico que faz referência à procura da mãe do Stuart (zuzu Angel) a pelo mesnos direito de ter o corpo do filho morto pela tortura. Genial. Pena que a fonte de inspiração dele fosse a sórdida repressão.

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  13. salvou meu trabalho de história, tava entendendo nada. Vlw e parabéns pela sua interpretação e texto, muito bem feitos.

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  14. Maravilhoso o texto,boa memória para analisar

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  15. Que letra linda realmebte incrivel mas numca tinha parado para analizar oy aprofundar parab3ns pela interpretacao

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  16. Gostei muito da sua interpretação, vai me ajuda em um trabalho que estou fazendo.

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  17. Muito boa essa interpretação muito agradeci do.

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  18. E uma canção de fato político que expressa a violenvios os protesto através do governo autoritário.

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  19. Não entendi a analogia em que ele faz ao monstro da lagoa, alguém pode esclarecer para mim ?

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